Existem sortidas formas de contarmos uma história sobre alguém, mas como contar a história de um contador de histórias? Vicente tem o costume de sentar-se em seu alpendre, de frente para o curral, e contar tramas para quem se junta a ele. Em cadeiras de fios de plástico, ele aconchegantemente se acomoda. Roupas simples, uma camisa de manga curta e uma calça de tecido confortável. O ápice do vestuário está na cintura: um coldre veste sua arma 38.
Um homem de grande sobriedade, o que ele escancara ao contar: “Eu via os outros falar de comprar assim e tava eu na rua lá, vi uma loja lá, tinha um povo comprando uns panos, pensei: “vou comprar um vestido pra minha mãe”, dinheiro não tinha nem um mil réis, eu não sabia que precisava de dinheiro não, pedi o rapaz um pano bonito que vi, peguei a peça e joguei nas costas, quando virei pra ir embora o rapaz gritou perguntando cadê o dinheiro, joguei a peça no chão e saí correndo…”. Nasceu em 1944, em Goiás, na serena Quirinópolis, um povoado que até dez anos antes de seu nascimento chamava-se Freguesia de Nossa Senhora D'Abadia.
Durante 20 anos sentou-se no lombo de uma mula, junto com uma tropa e distante de sua família. Passava 40, 50 ou até 60 dias tocando boiadas de grandes fazendeiros goianos para outros estados. Pai de três filhos, de nomes Adriano, Elaine e Lúcia, e casado com a carinhosa Nadir, deixava seu aconchegante recanto familiar para mais uma viagem. Dos anos 60 aos anos 80 enfrentou essa labuta. Condicionado à pressa de entregar a boiada, como ele mesmo diz: “quanto mais longe de casa a gente tava, mais perto de voltar tava. A gente voltava num caminhão com a tropa, então logo chegava em casa”. Comia em pé, dormia em redes e tocava o gado por 12 horas seguidas. Essas eram algumas das condições às quais submetia-se o tropeiro. Para além de conseguir realizar o sonho de comprar seu sítio, realizado nos anos 90, toda essa lida serviu também para que ele aglutinasse histórias.
Dar boas risadas, disse Vera sobre Vicente, levantando como uma característica que a agradava quando pensava em seu padrinho. Todos em volta concordaram e nisto foram surgindo mais e mais qualidades que todos queriam dizer sobre o patriarca da família. Elogios ao seu jeito carinhoso, ao seu jeito trabalhador (Vicente começou a trabalhar com 9 anos de idade vendendo verduras na rua). Também fizeram suas críticas. Desde pequeno teve contatos com armas e seus ascendentes familiares depositaram nele uma tradição da caça. Da mesma forma que cuidava com extremo amor de seus cachorros, às vezes até melhor do que tratava os humanos, acabava matando onças e javalis mato afora em suas incursões. Característica essa, citada por sua sobrinha Angélica e que, provavelmente, foi desaprovada pela família que permitiu-se desmemoriar tal tradição. Ainda sobre animais, detém uma habilidade que talvez seja oriunda da vida tropeira, que é a de adestrar cavalos. Nem os mais indomáveis escapariam de tornarem-se dóceis e amigáveis. Os cachorros não seguiram-se diferente disso. Já teve mais de 20 cachorros de uma vez, todos extremamente fiéis ao carinho de seu dono.
Impelido de um modo sui generis, permite influenciar suas histórias - não existe história que não possa ficar mais dramática ou mais cômica quando narrada pelo contador. Nadir, sua esposa, não acredita em todas elas. Algumas ela diz lembrar melhor do que ele e até o interrompe para corrigi-lo. Mas isso não inibe Vicente de continuar contando. Algumas histórias como a de que um dia estava com seu filho e uma outra criança em uma estrada e avistou uma luz no meio da mata. Naquela época, segundo ele, era extremamente incomum carros por alí e que acreditava não ser carro, pois não se movia e acreditava ser algo sobrenatural. Também a história de que ele bem novo teria disparado uma espingarda contra uma parede, onde do outro lado em um quarto havia uma senhora enferma e que por sorte não acertou-a, o que ele descobrira apenas no outro dia, pois ele escondeu-se de medo.
Morando em seu sítio, desde os anos 90, Vicente e Nadir mantêm um cotidiano praticamente inviolado pela vida na cidade e, em parte, pelos avanços tecnológicos. Sempre acordam às 6 da manhã. Rotina dos verdadeiros matutos, diz ele. Em pleno crepúsculo, antes mesmo de comer algo, reúne as vacas e seus bezerros no curral rústico, construído há muitos anos e com pouca manutenção. Vai ordenhando enquanto sua esposa busca o leite e leva o café preto. O casal produz queijo e requeijão para vender na cidade. Depois do curral, segue para jogar lavagem aos porcos da fazenda, esses animais se condicionaram a uma extrema felicidade ao vê-lo por saberem que é hora de comer -não sobra tempo para a noção de que uma hora a visita humana terá outro sentido, o da subsistência. Ainda tem que ir apanhar mandioca, única tarefa que não envolve animais que é de sua responsabilidade. Religiosamente, todo santo dia aparta o gado.
Ainda sobre os frutos de uma vida de tropeiro, nas rodas em torno de uma fogueira nos acampamentos, Vicente era violeiro. É visível em seu olhar o carinho quando fala sobre Tião Carreiro e Pardinho, Pena Branca e Xavantinho e algumas outras duplas do sertanejo tido como raíz. Outra consequência dos passatempos dos viajantes em horas vagas, é a paixão pelos jogos. Hoje, com orgulho, exibe seu troféu de campeão de truco da venda do Izá (um pequeno empório roceiro próximo ao sítio). Extremamente competitivo, joga dominó, truco, cacheta e tudo mais que puder ganhar. Conta peças, blefa e usa de todos os artifícios para isso. Ensinou seus filhos, seus netos e até seus genros a jogar.
Talvez jogar tenha sido uma forma de lidar com a vida, que também nada mais é do que um jogo. Aprender a ser calculista, não só dentro de seus passatempos, mas na forma de tomar atitudes. No final das contas, é feliz com a pontuação conseguida em 75 anos nesse espetáculo que é a existência.
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